domingo, 10 de outubro de 2010

Pouso de rei



O Pouso
 No sobrado, esculpido em uma das centenas de ladeiras de Ouro Preto, bem pertinho da Casa da Ópera de Vila Rica, de 1770, viveu uma mulher que inspirou um poema de Vinícius de Moraes, seu hóspede costumeiro. Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, com Zélia e Jorge Amado, também se reuniram nesta casa, um pouso cheio de histórias.

Lili foi uma dinamarquesa que viveu em Ouro Preto nos anos 50, casada com um pintor pernambucano de quem se separou mais tarde. Ela comprou um antigo casarão na cidade, o transformou em hotel, e, por ser das artes e falar pelo menos três línguas, se tornou conhecida entre intelectuais e artistas que frequentavam a região.

De Vinícius para Lili
Batizou o seu pequeno hotel de Pouso do Chico Rei, lugar que durante anos acumulou lembranças e escritos de tantos ilustres que passaram por lá. As paredes exibem livros com dedicatórias do poeta e fotos dessa história, mas também escondem cartas e outras lembranças que não estão à mostra.

O nome escolhido por Lili para a pousada também rende um causo. Chico Rei foi um líder africano capturado no século XVII por comerciantes portugueses. Arrancado de sua tribo e trazido ao Brasil para ser escravo, o negro forte foi parar na então Vila Rica, hoje Ouro Preto, onde passou a cavocar as duras montanhas nas minas de ouro. Conta-se que, muito inteligente, Chico Rei decidiu que compraria a sua alforria e, para tanto, passou a esconder lascas de ouro nos cabelos e nas unhas. Fez isso durante anos, resistindo a toda a humilhação e trabalho duro. Quando a Lei Áurea finalmente saiu, pôde pagar pela sua liberdade e, ainda, pela libertação de pessoas de sua família. Tornou-se um homem rico, ostentava ouro, comprou uma mina e construiu uma igreja para os negros.

Charme e alma
O Pouso do Chico Rei e da Lili tem essa alma. O casarão, que hoje está nas mãos do neto da fundadora e de sua esposa, é um daqueles lugares especiais, fora do nosso tempo, cheio de charme e segredos.

Além de tudo isso, tem mais uma personagem que torna esse lugar quase fictício: o Indiana Jones, aventureiro da região, porteiro da pousada, figura singular e encantadora.


Essa é uma outra história. Um outro post.

sábado, 24 de julho de 2010

A minha velhinha

Enrolada em trouxas de cobertores, deitada sobre o sofá, rodeada por uma imagem de Nossa Senhora e um rosário. Assim minha mãe encontrou a vó quando chegou ao seu apartamento no fim do dia, para saber como estavam as coisas. Estranhou a cena. Perguntou se estava tudo bem.
Debaixo de sua fortaleza de lã, ela tentava dissimular a preocupação dizendo que tinha se sentido um pouco mal durante a tarde. “Fiquei um pouco leve. Pressão baixa, deve ser. Coisa de velho”.
Depois de muito cutucar e espremer, a mãe descobriu que ela tinha sentido palpitações e, estranho, o maxilar havia ficado “endurecido” por alguns momentos. “Bobeira. Coisa de velho”, repetia.
Aos 87 anos, a minha avó teme o momento em que a morte irá econtrá-la. A ela, lhe custa ir ao médico, tomar remédios, ligar para os filhos e netos para dizer que não está bem. Sempre se virou sozinha, com santos e chás, e isso lhe basta. Com a idade avançada, agora, quando algo a abate, imagino que passe pela cabeça a pergunta: “será agora?”.

***

Quarenta e cinco anos antes, a morte a surpreendeu na janela de uma casa de madeira, num bairro calmo de Criciúma. Debruçada, ela olhava para a rua, esperando a volta do marido. Era assim sempre: ele viajava a trabalho e, quando retornava, a encontrava arrumada, impecável com os vestidos que ela mesma criava e costurava, com os filhos espalhados pelo pátio.

Nesse dia, ele demorou. Ela continuava espiando pela janela. Aos poucos, a rua se foi enchendo de vizinhos e amigos cabisbaixos que ouviram no rádio a notícia. Um acidente de carro na BR 101 vitimou o “pai”, como ela ainda o chama.

Da janela, conheceu a morte violenta que a deixou viúva com quatro filhos. Até então, a vida era “toda como eu tinha imaginado”, relembra. O vô Balthazar, contam, era um tipo brincalhão, cheio de amigos, viajante. Passeavam e dançavam nos bailes do clube, cujo salão hoje leva o seu nome.

Ela sofreu. Mas, quando percebeu que alguns barulhos estranhos estalavam pela casa na madrugada, decidiu que era hora de ser só. Rezou – e ainda hoje manda rezar missas em nome do falecido – e pediu a Deus: “Que ele descanse em paz. Ele lá e eu aqui”.

Para não ter de reencontrar a morte tão cedo, a minha velhinha se manteve metódica com sua alimentação, com suas ginásticas caseiras “para não enferrujar” – se retorce, dá voltas com os olhos, balança os braços, dá batidinhas na pele – e com o pensamento positivo. “É só imaginar tudinho como você quer que aconteça na sua vida, que acontece. Foi assim comigo”.

***

Disposta e lúcida com quase 90 anos, ela tenta usar dos mesmos métodos caseiros que sempre a ajudaram na vida para afastar a morte. Por mais alguns meses ou anos. Diante da preocupação dos filhos e netos, insistentes na posição de levá-la ao médico, ela desdenha como quem conhece um segredo.
Sozinha no apartamento no qual anos antes recomeçou a sua vida sem o marido, ela respira aliviada com sua santinha e seu rosário. Foi só um susto.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Quando um homem é doce

“Por fin aflojó la ira de la tormenta y con la primera luz en la ventana me duché y me vestí, mientras Willie, envuelto en su bata de jeque trasnochado, iba a la cocina. El olor del café recién molido me llegó como una caricia: aromaterapia. Estas rutinas de cada día nos unen más que los alborotos de la pasión; cuando estamos separados es esta danza discreta lo que más falta nos hace. Necesitamos sentir al otro presente en ese espacio intangible que es sólo nuestro. Un frío amanecer, café con tostadas, tiempo para escribir, una perra que mueve la cola y mi amante; la vida no puede ser mejor”.
“Quando estamos separados é essa dança discreta o que mais nos faz falta”. Da cama, repeti em voz alta esse trecho do livro “La suma de los dias”, de Isabel Allende. Ele me ouvia do banheiro, terminava o banho e logo estaria na nossa cama, após 20 dias longe.


- É exatamente assim comigo, falei. Quando você estava viajando, senti uma falta incrível de coisas tão pequenas... tomar café da manhã e acordar juntos, ver televisão espremido no sofá, abrir um vinho no fim do dia. Essas “rutinas de cada día”. Você também sente falta dessas coisas?


- Não sei. Só sei que quando estou fora fico com vontade de estar aqui.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Aqui dentro

A cama está quentinha, as pernas abraçadas ainda não despertaram para o alarme do relógio. Mais 5 minutos. Vira para o lado, um beijo no pescoço, costas com peito. O antes incômodo procedimento de acordar cedo se torna o momento mais doce do dia.
Outros 5 minutos de soneca para despertar outra vez, outro beijo, murmurar palavras mau-humoradas e dar um pulo preguiçoso para o mundo sem algodão de carne, olhos de cobertor, boca de colchão, mãos de travesseiro.
O dia é o que acontece entre a saída e a chegada.
Na volta, o carro na garagem apressa a vontade. Lá fora é frio, cerveja, barulho. Carros buzinam para uma fila que não tem aonde ir. Aqui dentro, calor e vinho. Barulho de chuveiro e conversa através do vidro nublado.
Um livro, um filme, um jogo de futebol na TV, o sofá, a cama. As pernas se buscam novamente, agora afoitas, seguidas pelas mãos, lençois, boca, travesseiro, pele...
O ritual da rotina termina onde começou. O dia dorme com sabor acre do vinho, acorda doce.

****
A gente percebe que envelhece quando prefere o lado de dentro. O mundo ainda é interessante, mas nem tanto.
E, perplexo, admite que é bom.
É muito bom.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Mente quieta, espinha ereta

Sentem-se com a coluna ereta. Mulheres com o pé esquerdo mais próximo ao corpo, pé direito por cima.

Era a minha primeira aula de meditação de concentração. Sim, porque há váários tipos de meditação, descobri. Já tinha feito aquela, que você relaxa, deitado, e dá uma vontade danada de tirar uma soneca.

A intenção agora é manter a pessoa consciente, concentrada em alguma imagem ou som, com a audição ligada nas instruções do professor.


Sinta cada músculo do seu corpo, do dedão do pé ao couro cabeludo, relaxar.


Como posso “relaxar” o couro cabeludo? Tagarelei em pensamento.
Xiti! Fica quieta. Você tem que RE-LA-XAR. Manter a mente quieta, a espinha ereta – ralhei comigo mesma.

 
Agora visualize um coração vermelho.


Ok. Estou vendo... Não estou pensando em mais nada...


(pausa de 10 segundos)


Hum...tá ficando meio desconfortável essa posição. Dorzinha nas costas... será que fiz algum ásana (exercícios do yôga) errado? Ah, já sei. Não devia ter tentando fazer aquela pirâmide invertida. Eu ainda não estou preparada para ficar de ponta cabeça. Mas tem o computador também. Esse negócio de ficar sentada o dia todo me estraga.


Fica quieta! Deu, chega! Agora concentra... que mente mais falante! Que será que o instrutor tá dizendo, perdi algo?


Agora, visualizem, dentro desse coração, uma pessoa, pode ser você, na posição de yogui.


Ai,vou ter que aumentar o tamanho do coração. Tinha imaginado um pequeninho, de desenho infantil mesmo. Ok, vamos aumentá-lo para caber alguém ali.

É, não consigo ME colocar lá, mas tem alguém. Pode ser o Rafa. Pronto, agora sim.


Fiquem com essa imagem mental. Concentre-se nela. Tente não pensar em mais nada.


Silêncio...


Silêncio...


Silêncio...


Ai, que coisa estranha. Esse escuro, esse silêncio...preciso abrir abrir os olhos!


Mesmo com a tagarelice dos meus pensamentos, por alguns segundos, me vi dentro de mim. Com os olhos fechados, percebi uma mente agitada dentro de um universo gigante, escuro, um lugar desconhecido.


Olhei de cima aquele túnel, um enorme vazio, um precipício.


Fiquei com medo.


Não pulei.


quinta-feira, 11 de março de 2010

Alguma coisa está fora da ordem

O mapa político do nosso mundo está sendo redesenhado.

A frase acima foi dita hoje por um importante ministro alemão, enquanto falava sobre o Brasil e as relações com o seu país. No salão, estavam empresários cujas companhias representam, ao menos, 5% do PIB industrial brasileiro.

Repentinamente, me soou estranho ouvir uma autoridade daquele porte, de uma das principais economias do mundo até então, falar do quão importante o Brasil está se tornando, de como saímos rápido de uma crise que fez ruir o castelo do tio Sam e que, na Europa, agora provoca reações capazes de ameaçar a Zona do Euro.

Que está havendo com o mundo? Alguma coisa me pareceu fora de lugar. O ministro – que, aliás, é gay e cumpre as viagens oficiais ao lado de seu companheiro, o que também é um sinal do avançado dos tempos – comentou também que essas mudanças que viram o mundo de ponta cabeça acontecem rapidamente hoje em dia, em 10 ou 20 anos, enquanto, no passado, demorariam 100 anos para se concretizar. É verdade.

Nesses 26 anos, desde que cheguei por aqui, muita coisa mudou. A última década, então, foi alucinante. Nasci em meio a uma ditadura no Brasil, presenciei a abertura econômica, um impeachment, inflação, crises, passeatas de “fora FMI”. Anos depois, o “analfabeto tosco” que, quando eu estava na escola, era rejeitado e xingado pela elite, vira presidente e torna-se o melhor amigo do crescimento econômico do Brasil.

Teve também ataque terrorista ao World Trade Center – um marco. Aí então, um negro de sorriso solto chega à presidência dos Estados Unidos, símbolo da arrogância, e na frente do mundo diz que o presidente do meu país “é o cara”. É o fim dos tempos.

Cuidar das plantinhas e da natureza deixou de ser uma lição vaga das aulas de ciências para se tornar o tema do momento. O mundo, como que num arrastão de catástrofes, começou a regurgitar suas doenças. É o fim dos tempos. Só pode.

Sem falar nas mudanças de comportamento – vi punk’s, clubbers, agora emos. Ih, tanta coisa mais...

Se o mundo não acabar (e eu acredito mesmo nessa possibilidade, dada essa conjuntura astral ), um dia direi aos meus filhos: eu vi a história.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

As mães da piscina


A piscina do prédio é o lugar onde todos se encontram. E todos, neste caso, quer dizer  os milhares de moradores das 11 torres com 24 apartamentos em cada uma. Faça as contas. Tem muita gente no condomínio, mas desconfio de que elas só descem de casa no verão, para ir ao clube. Durante as demais estações do ano, não sei onde se enfiam. Com exceção das mães. Essas sim, estão sempre pelas ruas arborizadas e ornamentadas como planta de arquiteto, crias a tiracolo.

As mães são as donas do condomínio. Quem passa apressado saindo para o trabalho ou chegando carregado de sacolas do supermercado é fitado com desdém. Elas acompanham com o olhar sem sorriso aquele estranho que não integra o seleto grupo dos que se conhecem nesse mundaréu de viventes empilhados. As mães não se misturam e não cumprimentam outra classe social.

Chega uma fase na vida em que só faz amigo no prédio quem tem filhos. Sobretudo se o prédio conta com uma enorme área de lazer, local preferido das famílias com mais de dois integrantes. E, enquanto os "sem-filho" sequer enxergam o vizinho de porta, os pais e mães andam em grupos barulhentos de crianças, babás e cachorros. Mas é na piscina que se dá a revanche.

Como se sabe, mulher não esquece e não perdoa. Quem é essa fulana que se acha a dona do prédio só porque conhece todo mundo e experimenta os milagres da maternidade?

Era domingo e, de longe, já se podiam ouvir os gritos das crianças. Elas gritam muito quando estão na água, repare. De um lado, panelinhas encorpadas juntam mesas e cadeiras, cervejas, quitutes e bóias. Tímidas, as “não-mães” chegam com os não menos constrangidos “não-pais”. Sentam-se, pegam livro, jornal, dão um mergulho rápido. Não é possível nadar com tantas bombas aquáticas explodindo.

Enquanto as mães orgulhosas observam as acrobacias de seus pequenos em seus biquínis comportados e rabos de cavalo, as sem-filho permanecem silenciosas em suas leituras e banhos de sol. Estateladas nas cadeiras, arrumam os diminutos biquínis, alternam posições, rolam de um lado a outro, alheias ao tumulto.

É na hora em que os pais assumem a brincadeira na água que uma moça bronzeada levanta, balança os cabelos, caminha com o olhar pra cima de quem não tem filhos pequenos pra cuidar e mergulha.

Os pais param. As mães se agrupam. São alguns instantes de silêncio. As sem-cria levantam os olhos de seus livros e, vingadas, sorriem.