terça-feira, 24 de julho de 2012

A liberdade em cada um


Said começava cada fala com uma pausa e uma pergunta. Ouvia, fazia um breve silêncio e questionava o interlocutor sobre o tema que, logo a seguir, seria seu.

Ele é um jovem saudita que conheci com roupas “ocidentais” em uma aula de inglês no Canadá. Como muitos outros que estudam naquele país, quase sempre custeados pelo governo árabe, ele trocou a roupa de sua cultura para conviver com costumes e ideias muito diferentes dos seus.

A aula de atualidades tinha o objetivo de promover uma conversação sobre temas contemporâneos e, nesse dia, o conflito na Síria tomava todos os noticiários. Dessa forma, não demorou muito para que o papo se voltasse para a questão “árabes x liberdade”.

Estávamos sentados um de frente para o outro, com o professor na cabeceira da mesa. Após o silêncio, Said me perguntou o que eu achava do islã.

Respondi que não sabia muita coisa sobre a religião. Podia imaginar que havia muitas distorções, assim como na Igreja Católica, mas confessei que me incomodam os abusos e a forma como as mulheres eram tratadas.

Ele assentiu com a cabeça, me fitando diretamente. Com voz suave e pausada, inspirando mais sabedoria do que se poderia supor de um jovem de 20 anos, perguntou:

- Você sabe qual é a palavra que mais aparece no Alcorão?

- Não.

- FREEDOM.

E emendou um discurso sobre liberdade com a autoridade daqueles que dela são privados. Said explicou que a religião está nas mãos do poder e de pessoas que não seguem as palavras do Profeta.

Explicou ainda que a forma como as mulheres são tratadas também não condiz com os ensinamentos do livro sagrado.

Perguntei a ele por que pensava assim.

- Porque eu li. Ninguém me disse. Estudei literatura árabe e li todo o livro sagrado, muitas pessoas não leem ou apenas enxergam aquilo que lhes é imposto. Dezenas de pessoas podem ler a mesma frase e cada uma terá uma interpretação diferente. Então, muitos acreditam naquilo que lhes dizem para acreditar.
(pausa)
Isso que estou falando aqui eu jamais falaria no meu país. Nem mesmo aqui, no Canadá, dentro da casa onde moro com outros árabes.

- E sua família?, perguntei.

- Meus pais também não pensam como eu. São tradicionais.

- E você veio de uma cultura tão diferente, como consegue entender tão bem a nossa cultura e ver a sua com esse distanciamento? Você mudou quando saiu de lá?

- Não. Eu sempre soube entender o outro.

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Said é o mais novo de uma família de quatro irmãos. Consigo imaginá-lo com seus trajes árabes, túnica branca, turbante. Todos se movendo na mesma direção ao seu redor e ele calando seus ideais libertários e sua compreensão de mundo perigosos em seu país.

Jovens como Said são produtos de sua cultura e, ao mesmo tempo, são o oposto dela. Nos olhos dele eu vi a mudança que talvez corresponda ao que chamam de Primavera Árabe.

É algo muito mais sutil do que os levantes que tomaram Líbia, Egito, Síria. Na Arabia Saudita não houve rebelião. A razão, suponho, é que o Estado garante aos cidadãos uma vida digna, saúde, estudo e trabalho - apesar de tudo. Ouvi isso de uma outra colega árabe, que considera o seu país muito melhor do que “o nosso”.

- Lá não tem ladrão, drogas, pobres. Não gastamos dinheiro com gasolina ou médico – disse.

Said, claro, replicou. Ela olhava como se não conseguisse entender sobre o que ele falava.
Liberdade.

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A revolução começa dentro de uma pessoa até que sejam várias. É quando, por alguma razão, as gerações seguintes começam a ver o mundo de uma forma diferente dos seus pais e antepassados.

A sabedoria de Said emociona porque é genuína, veio costurada em sua alma como um gene que o torna diferente. Um vírus que pode ser contagioso e contaminar com palavras.

Quando Said terminou seu discurso, eu e o professor nos olhamos como quem sai de um transe.  Sabíamos que estávamos diante de uma pessoa especial. Tivemos uma oportunidade incrível de ouvir a história em carne viva sobre fatos que observamos na mídia em forma relatos distantes e sem cor.

Transbordei de gratidão pela vida, pelas experiências. Deve ter sido num momento como esse que Quintana escreveu:

“Viajar é trocar a roupa da alma”.