sábado, 24 de julho de 2010

A minha velhinha

Enrolada em trouxas de cobertores, deitada sobre o sofá, rodeada por uma imagem de Nossa Senhora e um rosário. Assim minha mãe encontrou a vó quando chegou ao seu apartamento no fim do dia, para saber como estavam as coisas. Estranhou a cena. Perguntou se estava tudo bem.
Debaixo de sua fortaleza de lã, ela tentava dissimular a preocupação dizendo que tinha se sentido um pouco mal durante a tarde. “Fiquei um pouco leve. Pressão baixa, deve ser. Coisa de velho”.
Depois de muito cutucar e espremer, a mãe descobriu que ela tinha sentido palpitações e, estranho, o maxilar havia ficado “endurecido” por alguns momentos. “Bobeira. Coisa de velho”, repetia.
Aos 87 anos, a minha avó teme o momento em que a morte irá econtrá-la. A ela, lhe custa ir ao médico, tomar remédios, ligar para os filhos e netos para dizer que não está bem. Sempre se virou sozinha, com santos e chás, e isso lhe basta. Com a idade avançada, agora, quando algo a abate, imagino que passe pela cabeça a pergunta: “será agora?”.

***

Quarenta e cinco anos antes, a morte a surpreendeu na janela de uma casa de madeira, num bairro calmo de Criciúma. Debruçada, ela olhava para a rua, esperando a volta do marido. Era assim sempre: ele viajava a trabalho e, quando retornava, a encontrava arrumada, impecável com os vestidos que ela mesma criava e costurava, com os filhos espalhados pelo pátio.

Nesse dia, ele demorou. Ela continuava espiando pela janela. Aos poucos, a rua se foi enchendo de vizinhos e amigos cabisbaixos que ouviram no rádio a notícia. Um acidente de carro na BR 101 vitimou o “pai”, como ela ainda o chama.

Da janela, conheceu a morte violenta que a deixou viúva com quatro filhos. Até então, a vida era “toda como eu tinha imaginado”, relembra. O vô Balthazar, contam, era um tipo brincalhão, cheio de amigos, viajante. Passeavam e dançavam nos bailes do clube, cujo salão hoje leva o seu nome.

Ela sofreu. Mas, quando percebeu que alguns barulhos estranhos estalavam pela casa na madrugada, decidiu que era hora de ser só. Rezou – e ainda hoje manda rezar missas em nome do falecido – e pediu a Deus: “Que ele descanse em paz. Ele lá e eu aqui”.

Para não ter de reencontrar a morte tão cedo, a minha velhinha se manteve metódica com sua alimentação, com suas ginásticas caseiras “para não enferrujar” – se retorce, dá voltas com os olhos, balança os braços, dá batidinhas na pele – e com o pensamento positivo. “É só imaginar tudinho como você quer que aconteça na sua vida, que acontece. Foi assim comigo”.

***

Disposta e lúcida com quase 90 anos, ela tenta usar dos mesmos métodos caseiros que sempre a ajudaram na vida para afastar a morte. Por mais alguns meses ou anos. Diante da preocupação dos filhos e netos, insistentes na posição de levá-la ao médico, ela desdenha como quem conhece um segredo.
Sozinha no apartamento no qual anos antes recomeçou a sua vida sem o marido, ela respira aliviada com sua santinha e seu rosário. Foi só um susto.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Quando um homem é doce

“Por fin aflojó la ira de la tormenta y con la primera luz en la ventana me duché y me vestí, mientras Willie, envuelto en su bata de jeque trasnochado, iba a la cocina. El olor del café recién molido me llegó como una caricia: aromaterapia. Estas rutinas de cada día nos unen más que los alborotos de la pasión; cuando estamos separados es esta danza discreta lo que más falta nos hace. Necesitamos sentir al otro presente en ese espacio intangible que es sólo nuestro. Un frío amanecer, café con tostadas, tiempo para escribir, una perra que mueve la cola y mi amante; la vida no puede ser mejor”.
“Quando estamos separados é essa dança discreta o que mais nos faz falta”. Da cama, repeti em voz alta esse trecho do livro “La suma de los dias”, de Isabel Allende. Ele me ouvia do banheiro, terminava o banho e logo estaria na nossa cama, após 20 dias longe.


- É exatamente assim comigo, falei. Quando você estava viajando, senti uma falta incrível de coisas tão pequenas... tomar café da manhã e acordar juntos, ver televisão espremido no sofá, abrir um vinho no fim do dia. Essas “rutinas de cada día”. Você também sente falta dessas coisas?


- Não sei. Só sei que quando estou fora fico com vontade de estar aqui.