quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Despedida

Moro em Porto Alegre há 7 anos e tem muitas coisas que não fiz neste tempo todo. Pessoas que pouco vi, embora tivesse vontade de estar sempre perto. Lugares que não fui, simplesmente por saber que poderia ir a qualquer hora. Estavam todos ali, pessoas e lugares. Que bom se a vida sempre nos desse a oportunidade de nos despedir. Despedidas boas, felizes, daquelas que só acontecem quando a gente vai encontrar o próprio destino. Como diz a vó, destino é quando a gente não olha pra trás.

Sempre passava correndo pelo Centro da cidade. Ou tinha algum compromisso ou estava de passagem. Desta vez, eu tinha ido receber a rescisão. Na Praça da Alfândega, estavam os engraxates de sempre. Aqueles que tanto ouvi falar, que estão no mesmo lugar há décadas, que contam histórias de personagens da cidade, que estão se extinguindo. Eu nunca tinha parado para engraxar os sapatos como os velhinhos que costumam sentar ali, dois palmos acima do chão, com seus jornais e papo tranquilo de outros anos. Coisa de quem tem tempo sobrando, de quem não corre, eu pensava. Com a rescisão na mão e oficialmente desempregada, eu tinha tempo.

Encontrei um velho que aguardava um cliente, sentei ali em cima de onde se vê tanta gente passando, posicionei as botas de couro marrom e tratei logo de puxar conversa, que eu não sei quando poderei fazer isto novamente. Enquanto limpava o couro, o homem contava que há 37 anos estava ali, no mesmo lugar. Em outros tempos, as casinhas dos engraxates não eram do Banrisul. “Não sei por que tem o nome deles aí. Alguém deve ganhar. Eu é que não ganho”, dizia.

Seu Getúlio disse que houve uma época em que não se podia ficar no Centro. Coisa triste. Mais de 15 assaltos numa tarde. Depois, quando o PT entrou, melhorou muito. Aí veio o PMDB, achou que ia piorar, mas até que não. “Nem pra melhora, nem pra piora”. E já se foram mais de 20 anos. O Centro tá bom, mas o movimento é que não melhora. Pouca gente se senta para ver os sapatos engraxados e escutar histórias. Porque antes de passar a graxa mesmo, vai bem umas três ou quatro etapas. Demora. “Eu faço meu serviço direito”, garante seu Getúlio.

Um senhor com barba branca e rabo de cavalo passa no momento em que seu Getúlio começa a passar a primeira mão da tinta. Carrega uma pasta com um adesivo clamando “Fora Yeda” e sorri. Ele diz que nunca viu uma moça sentada ali. “Que bom isso”, me diz. Sorrimos, demos tchau, a tarde já ia começando. As pessoas saem apressadas do prédio para o horário de almoço. Eu, ali.

Seu Getúlio passa mais outra camada de graxa e esfrega com um paninho. Esfrega forte e de novo. Depois, pincela algo pra dar brilho. Esfrega. Enquanto isso, seu Getúlio ia me contando a vida. Disse que eu aparecesse mais vezes. Estou indo para São Paulo, contei-lhe. “Ah, terra poluída! Não fui, mas não gosto. Não largo o meu Rio Grande por nada. Mas eu nasci mesmo em Santa Catarina”. Com os sapatos brilhando, impecáveis, me despedi enquanto outro cliente antigo já aguardava a sua vez. Em São Paulo, vou adotar o hábito de engraxar os sapatos na rua, decidi.

Foi mais uma das despedidas das coisas que não tinha feito. Nas últimas semanas, também revi pessoas, bebi com outras, me reaproximei alguns. Mas “o que deixei de fazer” e “quem não vi” não foram mais importantes do que tudo o que vivi e conheci aqui. Me encontrei em Porto Alegre. Encontrei amigos que farão falta a cada dia, pessoas que compartilharam a faculdade, as festas, os papos sonhadores, o primeiro estágio, os primeiros dramas jornalísticos, as paixões, os casos, as risadas, o primeiro emprego, as tardes de sol com chimarrão na redenção. Cerveja na Rua da República, Lancheria do Parque, andanças pela Osvaldo. Coisas que não voltam, mas ficam.

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