segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Cruel


Como a vida pode ser cruel num país onde 

o preconceito de classe vem da escola



A menina abriu os olhos de manhã sem precisar ser despertada. Ansiosos também estavam seus pais e irmãos. A avó teria lhe beijado com orgulho na mesa do café de manhã, se não estivesse acamada com Alzheimer. Foi ela quem trabalhou duro para que aquilo pudesse acontecer agora. Pena que se encontrava tão doente logo agora descansaria sua velhice – 60 suados anos que lhe pesavam agora como 90 - na casa de alvenaria, cômodos amplos, cozinha nova e TV de plasma, lar de filhos e netos.

Todo o material e uniforme escolar esperavam desde a noite anterior ao lado da cama. Tomou banho naquela manhã, embora já estivesse limpa da noite e não costumasse fazer isso regularmente. Perfumou-se. Pegou o ônibus e viu seus pais darem as mãos na porta de casa com olhos luminosos. No ônibus lembrou dos colegas de tantos anos da escola que a partir de hoje deixava para trás, sentiu a garganta fechar, mas olhou para frente.

O colégio novo era grande, as salas eram amplas e modernas, tudo parecia com o que sonhava.

Durou 2 meses. A realidade destruiu o sonho.

 Favelada.

Era chamada assim por metade dos colegas. O restante não xingava, mas calava ao lado dos outros. Perseguida ou ignorada, passou do sonho ao pesadelo.

Disfarçou no primeiro dia ao voltar para casa, chorou escondida. Após duas semanas, não queria mais ir ao colégio dos sonhos. Teve de confessar que não ia por vergonha. Por tristeza.

E foi assim que desistiu do colégio particular a menina estudiosa de família humilde a quem lhe foi dito que se estudasse e aprendesse inglês poderia, um dia, chegar à faculdade. Seria a primeira da família.

Os colegas do prestigiado colégio particular mal notaram sua ausência.  Voltaram à normalidade e aos grupinhos usuais, concentrando as energias no gordinho da turma.

E nunca saberão que deixaram na menina essa marca. Não saberão como seus pais sofreram em vê-la desistir.

Não saberão que, 30 anos antes, sua avó morava com os filhos numa casinha de madeira e chão batido que gelava os ossos durante o inverno e torturava no verão.

A avó não tinha mais marido, por isso entregou sua vida ao trabalho, obstinada a dar algo de bom aos filhos. Teve a sorte de conhecer uma família com a qual foi trabalhar de doméstica. Cozinhando, limpando e cuidando das quatro crianças fez um outro lar.

Com o trabalho, a avó pôde sair da casinha de madeira. A casa agora tinha três quartos. O álbum de fotografias se misturava com imagens da família dos patrões. Criou os meninos como se fossem seus – viu quando passaram no vestibular, o primeiro a sair de casa, conheceu as namoradas, viu nascer a primeira neta.

Justo agora que o serviço era pouco e a casa própria estava pronta, veio a doença. Tantos anos de trabalho e foi preciso somente 1 ano para o Alzheimer derrubá-la.

O que os colegas do colégio particular jamais saberão é que ganhou a oportunidade de frequentar a escola graças ao amor daquela família pela sua avó. Um dos meninos, agora homem feito, lhe garantiu as mensalidades para que a luta da vó não se perdesse.

A família continuaria a progredir. Após tantos anos de devoção, a avó doente teria ajuda para que seu exemplo de trabalho e dignidade continuasse.

Disso tudo não sabiam os meninos da escola particular que riam da “favelada” (embora não fosse), suas roupas e seu jeito. E jamais saberão.

***** 

“...alguns alunos chegam de motorista, outros passam anos sendo ridicularizados, um deles com a merenda cuspida todos os dias...” (trecho do livro de Michel Laub)
Somos indulgentes com “brincadeiras” de criança – hoje já se discute mais os efeitos do bulling -, mas jamais refletimos sobre o quanto nossos atos e palavras podem marcar uma vida. Seja em crianças ou adultos.

Essa história se passou muito perto de mim, não faz muito tempo, cortou o coração e fez lembrar como a vida pode ser cruel quando se vive num país com imenso preconceito de classe como o nosso.

Menos combatido que o preconceito racial, o classismo brasileiro é tão intrínseco à nossa cultura que passa batido.

Em muitas cidades brasileiras, a inexistência de uma classe média expressiva cria um abismo tão profundo entre pobres e ricos que os dois mundos raramente se cruzam.  

 E fica então a reflexão: será válido colocar os filhos em uma escola tão nobre que jamais dará a eles o contato com uma outra realidade?
(Já sei, os pais estão mais preocupados com a formação intelectual e com as milhares de línguas e atividades oferecidas pela escola. Pois é...)

***

No livro “Diário da Queda”, de Michel Laub, ocorre uma história semelhante. O filho bolsista de uma família pobre é perseguido e agredido sistematicamente, das mais diferentes formas, por seus colegas judeus ricos ou “bem de vida” - entre eles o próprio autor-narrador.

Um dia, durante a festa de aniversário do o menino pobre chamado João, os colegas o deixam cair propositalmente no chão após jogá-lo para o alto treze vezes, segundo uma tradição judaica.

Os efeitos dessa queda retumbam no íntimo do narrador-agressor, que a partir daí passa a questionar uma série de valores, tornando esse momento um ponto de partida para o adulto que viria a se tornar.

Recomendo a leitura e a reflexão. 

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