Como a vida pode ser cruel num país onde
o preconceito de classe vem da escola
A
menina abriu os olhos de manhã sem precisar ser despertada. Ansiosos também estavam
seus pais e irmãos. A avó teria lhe beijado com orgulho na mesa do café de
manhã, se não estivesse acamada com Alzheimer. Foi ela quem trabalhou duro para
que aquilo pudesse acontecer agora. Pena que se encontrava tão doente logo
agora descansaria sua velhice – 60 suados anos que lhe pesavam agora como 90 -
na casa de alvenaria, cômodos amplos, cozinha nova e TV de plasma, lar de
filhos e netos.
Todo
o material e uniforme escolar esperavam desde a noite anterior ao lado da cama.
Tomou banho naquela manhã, embora já estivesse limpa da noite e não costumasse
fazer isso regularmente. Perfumou-se. Pegou o ônibus e viu seus pais darem as
mãos na porta de casa com olhos luminosos. No ônibus lembrou dos colegas de
tantos anos da escola que a partir de hoje deixava para trás, sentiu a garganta
fechar, mas olhou para frente.
O
colégio novo era grande, as salas eram amplas e modernas, tudo parecia com o
que sonhava.
Durou
2 meses. A realidade destruiu o sonho.
Favelada.
Era
chamada assim por metade dos colegas. O restante não xingava, mas calava ao
lado dos outros. Perseguida ou ignorada, passou do sonho ao pesadelo.
Disfarçou
no primeiro dia ao voltar para casa, chorou escondida. Após duas semanas, não
queria mais ir ao colégio dos sonhos. Teve de confessar que não ia por
vergonha. Por tristeza.
E
foi assim que desistiu do colégio particular a menina estudiosa de família
humilde a quem lhe foi dito que se estudasse e aprendesse inglês poderia, um
dia, chegar à faculdade. Seria a primeira da família.
Os
colegas do prestigiado colégio particular mal notaram sua ausência. Voltaram à normalidade e aos grupinhos usuais,
concentrando as energias no gordinho da turma.
E
nunca saberão que deixaram na menina essa marca. Não saberão como seus pais
sofreram em vê-la desistir.
Não
saberão que, 30 anos antes, sua avó morava com os filhos numa casinha de
madeira e chão batido que gelava os ossos durante o inverno e torturava no
verão.
A
avó não tinha mais marido, por isso entregou sua vida ao trabalho, obstinada a dar
algo de bom aos filhos. Teve a sorte de conhecer uma família com a qual foi
trabalhar de doméstica. Cozinhando, limpando e cuidando das quatro crianças fez
um outro lar.
Com
o trabalho, a avó pôde sair da casinha de madeira. A casa agora tinha três
quartos. O álbum de fotografias se misturava com imagens da família dos
patrões. Criou os meninos como se fossem seus – viu quando passaram no
vestibular, o primeiro a sair de casa, conheceu as namoradas, viu nascer a
primeira neta.
Justo
agora que o serviço era pouco e a casa própria estava pronta, veio a doença. Tantos
anos de trabalho e foi preciso somente 1 ano para o Alzheimer derrubá-la.
O
que os colegas do colégio particular jamais saberão é que ganhou a oportunidade
de frequentar a escola graças ao amor daquela família pela sua avó. Um dos
meninos, agora homem feito, lhe garantiu as mensalidades para que a luta da vó
não se perdesse.
A
família continuaria a progredir. Após tantos anos de devoção, a avó doente
teria ajuda para que seu exemplo de trabalho e dignidade continuasse.
Disso
tudo não sabiam os meninos da escola particular que riam da “favelada” (embora
não fosse), suas roupas e seu jeito. E jamais saberão.
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“...alguns alunos chegam de motorista, outros passam anos sendo ridicularizados, um deles com a merenda cuspida todos os dias...” (trecho do livro de Michel Laub) |
Somos
indulgentes com “brincadeiras” de criança – hoje já se discute mais os efeitos
do bulling -, mas jamais refletimos sobre o quanto nossos atos e palavras podem
marcar uma vida. Seja em crianças ou adultos.
Essa
história se passou muito perto de mim, não faz muito tempo, cortou o coração e
fez lembrar como a vida pode ser cruel quando se vive num país com imenso
preconceito de classe como o nosso.
Menos
combatido que o preconceito racial, o classismo brasileiro é tão intrínseco à
nossa cultura que passa batido.
Em
muitas cidades brasileiras, a inexistência de uma classe média expressiva cria
um abismo tão profundo entre pobres e ricos que os dois mundos raramente se
cruzam.
E fica então a reflexão: será válido colocar
os filhos em uma escola tão nobre que jamais dará a eles o contato com uma
outra realidade?
(Já
sei, os pais estão mais preocupados com a formação intelectual e com as
milhares de línguas e atividades oferecidas pela escola. Pois é...)
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No
livro “Diário da Queda”, de Michel Laub, ocorre uma história semelhante. O
filho bolsista de uma família pobre é perseguido e agredido sistematicamente, das
mais diferentes formas, por seus colegas judeus ricos ou “bem de vida” - entre
eles o próprio autor-narrador.
Um
dia, durante a festa de aniversário do o menino pobre chamado João, os colegas
o deixam cair propositalmente no chão após jogá-lo para o alto treze vezes,
segundo uma tradição judaica.
Os
efeitos dessa queda retumbam no íntimo do narrador-agressor, que a partir daí
passa a questionar uma série de valores, tornando esse momento um ponto de
partida para o adulto que viria a se tornar.
Recomendo
a leitura e a reflexão.