
Ele é um jovem saudita que conheci com roupas “ocidentais” em uma
aula de inglês no Canadá. Como muitos outros que estudam naquele país, quase
sempre custeados pelo governo árabe, ele trocou a roupa de sua cultura para
conviver com costumes e ideias muito diferentes dos seus.
A aula de atualidades tinha o objetivo de promover uma conversação
sobre temas contemporâneos e, nesse dia, o conflito na Síria tomava todos os
noticiários. Dessa forma, não demorou muito para que o papo se voltasse para a
questão “árabes x liberdade”.
Estávamos sentados um de frente para o outro, com o professor na cabeceira
da mesa. Após o silêncio, Said me perguntou o que eu achava do islã.
Respondi que não sabia muita coisa sobre a religião. Podia
imaginar que havia muitas distorções, assim como na Igreja Católica, mas confessei
que me incomodam os abusos e a forma como as mulheres eram tratadas.
Ele assentiu com a cabeça, me fitando diretamente. Com voz suave e
pausada, inspirando mais sabedoria do que se poderia supor de um jovem de 20
anos, perguntou:
- Você sabe qual é a palavra que mais aparece no Alcorão?
- Não.
- FREEDOM.
E emendou um discurso sobre liberdade com a
autoridade daqueles que dela são privados. Said explicou que a religião está
nas mãos do poder e de pessoas que não seguem as palavras do Profeta.
Explicou ainda que a forma como as mulheres são
tratadas também não condiz com os ensinamentos do livro sagrado.
Perguntei a ele por que pensava assim.
- Porque eu li. Ninguém me disse. Estudei
literatura árabe e li todo o livro sagrado, muitas pessoas não leem ou apenas enxergam
aquilo que lhes é imposto. Dezenas de pessoas podem ler a mesma frase e cada
uma terá uma interpretação diferente. Então, muitos acreditam naquilo que lhes
dizem para acreditar.
(pausa)
Isso que estou falando aqui eu jamais falaria no
meu país. Nem mesmo aqui, no Canadá, dentro da casa onde moro com outros
árabes.
- E sua família?, perguntei.
- Meus pais também não pensam como eu. São tradicionais.
- E você veio de uma cultura tão diferente, como
consegue entender tão bem a nossa cultura e ver a sua com esse distanciamento?
Você mudou quando saiu de lá?
- Não. Eu sempre soube entender o outro.
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Said é o mais novo de uma família de quatro
irmãos. Consigo imaginá-lo com seus trajes árabes, túnica branca, turbante.
Todos se movendo na mesma direção ao seu redor e ele calando seus ideais libertários
e sua compreensão de mundo perigosos em seu país.
Jovens como Said são produtos de sua cultura e,
ao mesmo tempo, são o oposto dela. Nos olhos dele eu vi a mudança que talvez
corresponda ao que chamam de Primavera Árabe.
É algo muito mais sutil do que os levantes que
tomaram Líbia, Egito, Síria. Na Arabia Saudita não houve rebelião. A razão,
suponho, é que o Estado garante aos cidadãos uma vida digna, saúde, estudo e
trabalho - apesar de tudo. Ouvi isso de uma outra colega árabe, que considera o
seu país muito melhor do que “o nosso”.
- Lá não tem ladrão, drogas, pobres. Não gastamos
dinheiro com gasolina ou médico – disse.
Said, claro, replicou. Ela olhava como se não
conseguisse entender sobre o que ele falava.
Liberdade.
Liberdade.
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A revolução começa dentro de uma pessoa até que
sejam várias. É quando, por alguma razão, as gerações seguintes começam a ver o
mundo de uma forma diferente dos seus pais e antepassados.
A sabedoria de Said emociona porque é genuína,
veio costurada em sua alma como um gene que o torna diferente. Um vírus que
pode ser contagioso e contaminar com palavras.
Quando Said terminou seu discurso, eu e o
professor nos olhamos como quem sai de um transe. Sabíamos que estávamos diante de uma pessoa
especial. Tivemos uma oportunidade incrível de ouvir a história em carne
viva sobre fatos que observamos na mídia em forma relatos distantes e sem cor.
Transbordei de gratidão pela vida, pelas
experiências. Deve ter sido num momento como esse que Quintana escreveu:
“Viajar é trocar a roupa da alma”.