quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A moça que queria ler

Àquela hora da manhã, normalmente, o ônibus já estaria lotado. Os trabalhadores nordestinos da incansável "Pauliceia Desvairada" já estariam se espremendo no corredor apertado do ônibus trôpego, mastigado pelos buracos que tornam a selva do trânsito paulistano ainda mais hostil. As crateras estão sempre ali para lembrar que, mesmo quando não há filas, a passagem não é livre. O caminho é árduo. Os transportes que carregam os trabalhadores rumo às suas jornadas diárias são paus-de-arara empoeirados que sacolejam ao som de vozes baianas, paraibanas, cearenses.

Sentada junto à janela, encolhida como quem tenta encostar nos joelhos a cabeça, a moça parecia não sentir os solavancos da rua, nem os sons das vozes altas, nem o sono dos que ainda dormiam no coletivo. Com o jornal dobrado ao meio, esgueirava os dedos entre as letras da manchete principal e aproximava-se cada vez mais, desejando entrar na página. As sílabas saíam preguiçosas dos lábios, a voz ajudando os olhos a decifrar. Falava baixo, para si mesma, o banco ao lado vazio. Cansava. Parava. Abria o jornal e dobrava-o ao meio novamente, marcando bem a dobra, alisando-a, e pedindo ajuda mentalmente para o papel. Tornava a passar os dedos pelas letras e a balbuciar as sílabas, depois palavras inteiras, seguidas de um sorriso tímido por uma conquista envergonhada.

Ela soletrava uma palavra no mesmo instante em que alguém se preparava para sentar ao lado. Nem percebeu. O passageiro sentou-se, olhou confortavelmente para o jornal alheio e, então, foi percebido. De volta à consciência, a moça girou o olhar em torno de si, sentiu o ônibus tropeçar nos buracos e viu que uma garoa fina caía sobre a fila de carros. Puxou a mão que tateava as letras, baixou a cabeça, escondeu o jornal. Inquieta, conferiu as horas e espremeu-se contra a janela. O ônibus andava e parava, pesado, lento.

Sorriu com os olhos quando, finalmente, o passageiro levantou-se e apertou o sinal. Desembrulhou o jornal e mergulhou novamente na página cinza de palavras misteriosas.